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*Por Dr. Manoel dos Santos

É impressionante o paradoxo revelado entre os avanços que a Receita Federal do Brasil (RFB) atingiu no uso da tecnologia da informação em suas atividades nas últimas décadas em contraponto aos retrocessos e insegurança jurídica que esse mesmo órgão gera quando se propõe a interpretar a legislação que estabelece a tributação dos bens e serviços na área da tecnologia da informação.

Muitos vivenciaram a era na qual as declarações imposto de renda eram apresentadas em formulários impressos e protocoladas em enormes filas que se formavam nas agências bancárias, ou quando os pedidos de compensação de tributos federais eram realizados por meio de processos físicos que demoravam anos para serem analisados. 

Atualmente, entretanto, praticamente “tudo é digital” no relacionamento com a Receita Federal: a escrituração contábil, a escrituração fiscal, o cumprimento das obrigações acessórias (RAIS, DIRF e DCTF), a emissão das guias e o recolhimento dos tributos e, até mesmo, a obtenção de certidões negativas. Estes são alguns exemplos da digitalização dos processos da RFB que, como usuária de serviços de tecnologia da informação, é um exemplo para o país e conquistou reconhecimento mundial pelo seu pioneirismo.

Por outro lado, quando a RFB se volta a interpretar a tributação dos bens e serviços na área tecnologia da informação, o órgão coleciona uma infinidade de “barbeiragens” inconcebíveis, distanciando-se a tal ponto da realidade, que suscita o questionamento a respeito de tratar-se de uma política tendenciosamente direcionada a fim de elevar a arrecadação, via interpretação fantasiosa das normais tributárias aplicáveis ao setor. 

Tentativa de legislar e desfigurar o conceito de “software importado” com propósitos tributários

Infelizmente, podemos apresentar um histórico com vários exemplos que ajudam a amparar essas minhas considerações, inclusive com discussões que estavam pacificadas que estão sendo retomadas, como a sobre o conceito de “software importado”, por meio da tentativa da RFB de alterar por meio de uma simples instrução normativa (IN RFB Nº 2.121, divulgada em 15 de dezembro de 2022) a definição (conceito) do que seja um “software importado”.

Com essa “singela” intervenção e sem tem o poder de legislar, a RFB queria estabelecer como “importado” o software “produzido por pessoa jurídica cuja sede não está localizada no País”. No entanto, tal redação não está alicerçada em nenhuma norma antes publicada – nem na lei nº 10.833/03, nem em qualquer outro arcabouço legal pré ou pós existentes. Se esta IN tivesse emplacado, o setor teria um aumento de 3,0% para 7,6% no COFINS e elevação de 0,65% para 1,65% no PIS. Ou seja, se as empresas “embarcassem nessa canoa furada”, deixariam de pagar PIS/COFINS, somando juntos 3,65%, para recolherem 9,25%! Uma elevação de 5,5% de carga tributária sobre o faturamento nas operações envolvendo software que “não foram produzidos por empresa com sede no Brasil”, na visão exclusiva da RFB. Cabe sinalizar o fato de ser impossível definir, atualmente, com precisão o local onde o software foi desenvolvido, especialmente na frente à existência do trabalho híbrido (senão totalmente remoto), que é uma realidade universal.

A seguir, vou me ater a três equívocos mais recentes que podem gerar aumento da carga tributária. Um envolve as intepretações da RFB que tentavam imputar o pagamento de royalties ao setor de TI e a insegurança jurídica que ainda persiste. Os outros dois equívocos dizem respeito à suposta apuração do Lucro Presumido nas receitas com software e à tributação da aquisição ou renovação de licença de uso de software no exterior.

Antes de avançarmos, considero importante sinalizar que os direitos de distribuição e comercialização de software surgiram com o art. 29, da lei 7.646/87[1], foram ratificados pelos dizeres do artigo 10, da Lei 9.609/98[2], encontram-se expressamente mencionados no §1º-A, da Lei 10.168/00[3], enquadram-se no art. 767 do RIR (Regulamento Interno da Receita – decreto 9.580/2018) e tem sua raiz no artigo 72 da Lei 9.430/1996.

Indevida cobrança de royalties

Dentre as atividades primordiais no setor de software prevalece a comercialização no território brasileiro de programas de computador de origem externa (“distribuição”), efetuando em contrapartida e esse direito, remessas ao exterior a título de remuneração pelos direitos de comercialização ou distribuição desses programas de computador. Referidas remessas representam custos operacionais necessários às atividades dessas empresas e à manutenção das suas respectivas fontes produtoras

Vale dizer que os pagamentos de tais gastos representam o principal custo atrelado à atividade de distribuição de software no Brasil. Não obstante o claro atendimento desses custos aos requisitos do artigo 299 do RIR (habitual, necessária e geradora de receita),  a partir do ano de 2014, várias empresas que realizam operações com pessoas vinculadas,  foram surpreendidas com a lavratura de autos de infração exigindo IRPJ e CSLL (contribuição sobre lucro líquido), sob a alegação de que “as despesas de licença de uso de software, configurando royalties de natureza de direito autoral, encontram-se na regra geral e são indedutíveis quando pagas a sócios, de acordo com art. 353, I, do RIR/99”, e estariam caracterizados pela indedutibilidade, na forma prevista na alínea “d” do parágrafo único do art. 71 da Lei nº 4.506, de 1964.

Apesar da conceituação inadequada ao dizer que os pagamentos seriam feitos “a título de royalties”, somente a publicação recente da Solução de Consulta (SC) COSIT 182/2019 trouxe um certo alívio ao setor, pois esta solução definiu que os pagamentos pelo direito de distribuição/comercialização de softwares que são realizados a controladores indiretos, pertencentes ao mesmo grupo econômico, não implicam, por si, na indedutibilidade antes mencionada.  Mas, mesmo após a publicação da SC citada, ainda subsiste o entendimento da RFB a respeito da não dedutibilidade dos pagamentos quando são realizados a controladores diretos, o que leva à persistência da insegurança jurídica. 

Em atendimento à solicitação do setor – que por mais de três anos esteve em permanente contato com os profissionais do Ministério da Economia, acompanhando a elaboração e tramitação da norma até sua efetiva publicação – em 14/06/2023 foi sancionada a Lei nº 14.596, que dispõe sobre preços de transferência e eliminou os artigos das leis 4.341 e 4.506 que limitavam a dedutibilidade dos “royalties”, com o que, a partir de fatos geradores ocorridos após 01/01/2023, as empresas passarão a poder lançar como custos os dispêndios com direitos de comercialização ou distribuição de programas de computador. Mas, restaram os riscos de eventuais autuações pelo Fisco Federal em face da contabilização como custos, em relação aos dispêndios direitos de comercialização ou distribuição de software sobre as operações realizadas até 31/12/2022, assim como restam as discussões nas esferas administrativa e judicial referentes aos autos de infração que já haviam sido lavrados anteriormente à edição da Lei nº 14.596. É evidente que esse contencioso é fruto do equívoco interpretativo por parte da RFB a respeito da efetiva natureza dos direitos de comercialização ou distribuição de software, que recebem tratamento tributário como remuneração, a qualquer título, de qualquer forma de direito  e em nada se confundem com “royalties”.

Importante registrar que esse tratamento arredio por parte do órgão do Ministério da Economia responsável pela fiscalização dos tributos federais quanto à dedutibilidade de tais direitos: 1) afugentou empresas internacionais que pretendiam operar no País no setor de TI; 2) criou “saia justa” aos gestores das unidades brasileiras de companhias multinacionais que aqui operam, na árdua tarefa de tentar justificar perante suas matrizes os autos de infração emitidos contra essas empresas, e 3) inviabilizou que essas sociedades decidissem por realizar novos investimentos no Brasil.

Mudanças de entendimento e aumento da carga tributária

No que se refere às divergências na apuração do Lucro Presumido nas receitas com software, veremos que, contrariando o entendimento expresso em inúmeras outras soluções de Consulta e Divergência, desde a Solução de Consulta DISIT/SRRF07 Nº 99, de 15/04/2003, até a SC DISIT-SRRF/06 Nº 6022/21, que sustentam que “a venda (desenvolvimento e edição) de softwares prontos para o uso (standard ou de prateleira) classifica-se como venda de mercadoria, e o percentual para a determinação da base de cálculo do IRPJ é de 8% sobre a receita bruta”,  em 7 de fevereiro de 2023, após vinte anos, a Receita Federal do Brasil publicou a Solução de Consulta COSIT Nº 36/2023, por meio da qual modificou o entendimento que prevaleceu por anos e definiu que o percentual de 32% deve ser aplicado sobre a receita bruta para apuração do lucro presumido em relação às receitas com “softwares prontos para o uso (standard ou de prateleira)”, quadruplicando inesperadamente os tributos recolhidos pelas empresas desse segmento com IRPJ e CSLL.

Como se esses dois equívocos não já fossem suficientes, no dia 06 de junho de 2023, a RFB publicou a Solução de Consulta COSIT nº 107 de 2023 na qual trata da tributação relativa aos valores pagos, ao exterior, pelo usuário final, para fins de aquisição ou renovação de licença de uso de software, para uso próprio, destinado a consumidor final. A nova regra não afeta diretamente a atividade de exploração econômica de software, mas, ainda assim, falhas técnicas que maculam a imagem da RFB podem ser identificadas nessa nova normativa. 

A citada normativa define que, independentemente de customização ou do meio empregado na entrega, os pagamentos antes mencionados caracterizariam royalties e estariam sujeitos à incidência de Imposto sobre a Renda na Fonte (IRRF), em regra, sob a alíquota de 15% (quinze por cento). Além disso, pelas mesmas razões, incidirão sobre tais remessas também a Contribuição para o PIS/Pasep e a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins). Reiteramos, entretanto, que as remessas em pagamento de licença de uso e de direitos de distribuição e comercialização de software recebem tratamento tributário como “remuneração, a qualquer título, de qualquer forma de direito”, já que representam uma espécie distinta de direito, um direto próprio, uma remuneração específica,direito esse que é totalmente distinto de “royalties”.

Existe ainda outro equívoco no texto da Solução de Consulta COSIT Nº 107, de 06/06/2023, quando faz referência aos “SERVIÇOS TÉCNICOS DE MANUTENÇÃO. ATUALIZAÇÃO DE VERSÃO SEM AQUISIÇÃO DE NOVA LICENÇA”, sustentando que as remessas inerentes a tais pagamentos estariam sujeitas à CIDE-Remessas (10%). Ocorre que o cliente (licenciado) se dispõe a pagar a “taxa mensal/anual” a título de atualização, não com a preocupação de poder utilizar o chamado “suporte técnico”. Ao fazer os pagamentos pelos “serviços técnicos de manutenção e atualização de versão”, o licenciado (usuário) almeja exatamente o direito de receber “as melhorias, as novas versões, as correções de erros, os novos releases” que forem lançadas pelo titular do software durante o período de garantia ou durante o prazo de vigência do contrato de “manutenção/atualização”. De fato, a substância dos serviços de atualização de versão de software reside na entrega de “software”.  Assim, a “renovação da licença” (ou “atualização”) tem a mesma natureza  do licenciamento inicial Partindo dessa certeza  – de que  a licença inicial e a renovação de licença de uso de software são equivalentes –  e, considerando-se que o §1º-A, do art. 2º, da lei 10.168/00 expressamente declara a não incidência da CIDE sobre “a remuneração pela licença de uso de software”pode-se afirmar que a Solução de Consulta  Nº 107/2023 contempla grave equívoco quando sustenta a incidência da CIDE sobre “a remuneração em caso de contratação de serviço técnico de manutenção pela atualização da versão do próprio software”.

Não importa se esses embates ocorrem por falta de familiarização com os temas afetos ao setor de software e os serviços de tecnologia da informação, ou se resultam de comandos superiores, dirigidos aos Agentes do Fisco Federal no sentido de que, em suas manifestações sobre questões tributárias expressem, invariavelmente, a “interpretação mais favorável ao Fisco”. É inequívoco, porém, que os acontecimentos acima relatados atestam que as manifestações emanadas da Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil têm subvertido o comando contido no artigo 110 do Código Tributário Nacional, o qual estabelece que “a lei  tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de INSTITUTOS, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias”, suscitando questionamentos judiciais. Tais interpretações e soluções estão fragilizando a segurança jurídica e criando um ambiente hostil que desestabiliza o importante e transversal mercado de software e de serviços de TI.

*Dr. Manoel dos Santos, Diretor Jurídico da ABES – Associação Brasileira das Empresas de Software

[1] Art. 29. A aprovação e a averbação serão concedidas aos atos e contratos, relativos a programa de origem externa, que estabelecerem remuneração do autor, cessionário residente ou domiciliado no exterior, a preço certo por cópia e respectiva documentação técnica, que não exceda o valor médio mundial praticado na distribuição do mesmo produto, não sendo permitido pagamento calculado em função de produção, receita ou lucro do cessionário ou do usuário.

[2] Art. 10. Os atos e contratos de licença de direitos de comercialização referentes a programas de computador de origem externa…”

[3]§ 1o-A.  A contribuição de que trata este artigo não incide sobre a remuneração pela licença de uso ou de direitos de comercialização ou distribuição de programa de computador, salvo quando envolverem a transferência da correspondente tecnologia.

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