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Por Cassio Pantaleoni*

"Do ponto de vista de um peixe, um lago cercado de terra é uma ilha." – Richard Dawkins.

Por que razão interagimos no ambiente digital da maneira como interagimos, substanciando-o, tramando-o, observando-o e, sobretudo, esperando encontrar ali a derradeira sensação de pertencimento ao mundo natural? Que entidade é esta – o mundo digital – que é construída a esmo pelos milhões de registros humanos e, mais recentemente, registros de outros objetos do mundo (IoT)?

O fenômeno a notar é esta gigantesca incontinência na criação e na cocriação de dados, na coevolução do meio digital, na corrida armamentista, na manipulação parasita de dados pessoais (vírus, cavalos de troia, programas de phishing etc), na manipulação dos dados do mundo inanimado, nas estratégias econômicas baseadas em modelos analíticos para minimizar custos e maximizar receitas, nas simulações engendradas por jogos e estratégias de refinamento de programas de inteligência artificial, entre outros. A estatística impressiona: estima-se que em 2019 chegou-se à marca de 4.4 bilhões de usuários da internet. A cada minuto, as mídias sociais registram 500 novos usuários, o Twitter registra 474.000 postagens, são assistidos 4,3 milhões de vídeos no Youtube e o Instagram registra 69 milhões de postagens (fonte: Internet Data). No mundo digital, a disposição humana de modificar o ambiente ou de manipular outros indivíduos encontra muitas facilidades.

No livro O fenótipo estendido, o biólogo evolucionista Richard Dawkins oferece uma perspectiva interessante acerca do conceito de fenótipo – entendido como características observáveis ou caracteres de um organismo ou população resultante da expressão dos genes. Quero incluí-la aqui para elaborar o tema. Ele argumenta que não deveríamos restringir a ideia de fenótipo apenas para o que resulta como aparência de certo organismo por efeito da expressão de seus genes. Ele sugere que os genes não afetam apenas o corpo do organismo, mas também a capacidade de modificar o ambiente ou de manipular outros organismos. O argumento não é de todo novo. O zoólogo Konrad Lorenz, em 1937, sugeria que os padrões comportamentais dos animais poderiam ser tratados tal qual um órgão anatômico.

Vale salientar esta relação do fenômeno decorrente da maneira como interagimos com o ecossistema digital e as considerações de Dawkins. Nossos genes definitivamente conferem-nos esta capacidade e disposição. Em essência, assim como outros animais, nós manipulamos objetos no mundo ao nosso redor. Nossas estratégias para isto não diferem muito de outros casos da natureza. Dawkins nos dá alguns exemplos:

"Um pombo carrega galhos para o ninho. Um polvo sopra areia do fundo do mar para expor a presa. Um castor abate árvores e, por meio de sua represa, manipula toda a paisagem por quilômetros ao redor de seu alojamento. Quando o objeto que um animal procura manipular não é vivo, ou pelo menos quando não se move autonomamente, o animal não tem escolha a não ser deslocá-lo pela força bruta. Um besouro de esterco pode mover uma bola de esterco apenas empurrando-a à força. Mas, às vezes, um animal pode se beneficiar movendo um 'objeto' que passa a ser outro animal vivo (…) Embora ainda seja possível mudar esse "objeto" por força bruta, o objetivo pode ser mais economicamente executado por meios mais sutis (…) Um grilo macho não empurra uma fêmea contra o chão e a arrasta até sua toca. Ele se senta e canta, e a fêmea chega até ele sob sua influência. Do ponto de vista dele, essa comunicação é energeticamente mais eficiente do que tentar levá-la à força."

À luz do argumento de Dawkins, o modo como cada um de nós modifica o mundo ao seu redor – ou influencia os outros – corresponde ao nosso fenótipo estendido. Poderíamos então aludir que, no âmbito digital, cada um de nós dispõe de características que conformam algo que poderíamos denominar fenótipo digital, como se fosse extensão adicional de nosso já estendido fenótipo; algo que na dinâmica digital subsidia as análises sobre cada um de nós e oferece caminhos de influência sobre nossas decisões de compra, de preferências políticas, de engajamento em causas sociais etc.

Haja vista que todas as nossas interações no meio digital são sustentadas pela Web, quero aludir às aranhas e às suas teias e, assim, tentar desenvolver um paralelo que possa de alguma maneira propor resposta à pergunta oferecida logo ao início deste artigo.

Ainda citando Dawkins, no livro A escalada do monte improvável, ele descreve em detalhes as sutilezas do processo de construção das teias de aranha. Para que sejam efetivas, os fios que tramam precisam ser viscosos. É a viscosidade que torna os fios pegajosos, evitando que as presas escapem. O curioso, entretanto, é que os fios perdem a viscosidade, obrigando a aranha a reconstruir a viscosidade todos os dias. Porém a maioria delas não são imunes aos seus próprios fios pegajosos. Para não serem vítimas de suas teias, elas mantêm um caminho específico para que possam se descolar até a presa sem cair na própria armadilha. Porém, há vários problemas a enfrentar na construção da teia. O primeiro deles é como colocar o fio no espaço entre uma rocha e uma árvore, por exemplo. A estratégia é a mesma que usamos para empinar uma pipa: a aranha tece na ponta do fio uma pequena vela achatada que, com o auxílio de uma leve brisa, flutua até aderir a outro objeto. Este primeiro fio é a ponte principal da teia. Não é nada planejado. É apenas o resultado de um processo recorrente de tentativa e erro até que o sucesso seja alcançado e a ponte esteja disponível. A partir daí a estrutura inicial da teia é formada e, ao final, a ponte original é digerida pela aranha enquanto ela a percorre e simultaneamente gera uma nova ponte, desta vez um fio possível de ser esticado para formar um V e assim determinar o centro da teia. As próximas duas tarefas são: colocar os raios restantes que saem do centro e a moldura da borda. Como a aranha não é imune à viscosidade dos fios, a tarefa de completar a teia com os vários raios exige que ela estabeleça conexões temporárias, como se fossem andaimes temporários. É assim que a espiral pegajosa poderá finalmente ser construída, e quando o trabalho está concluído, todos os fios não pegajosos são destruídos pela aranha. Há muito mais detalhes neste processo mas em linhas gerais a engenharia é esta.

Quando nos remetemos à construção da teia digital (a web), muitas de nossas estratégias se assemelham ao trabalho da aranha. Quando ingressamos no mundo digital, os primeiros dados que registramos são capturados pela viscosidade da Web. O mundo digital assume que você não está imune à própria viscosidade dos fios com os quais a sua teia será construída. É um trade-off para que você tenha o direito de construir a sua teia. Porém nada é planejado. Tudo é um processo de tentativa e erro. Os andaimes temporários são as conexões que você começa a estabelecer, que dão conta não apenas de conexões entre indivíduos, mas também entre diferentes canais de interação. Enquanto os seus dados são capturados pelas teias já disponíveis no ambiente digital, você gradativamente é beneficiado pela capacidade que sua própria teia tem de capturar dados de terceiros. É um trade-off absolutamente dissimulado, mas que na prática se estabelece como um vício. No entanto, na medida em que você é capturado e captura, é natural que o refinamento de sua própria teia defina aqueles fios no qual você pode se deslocar sem o risco de estar à mercê da viscosidade já presente. Porém este processo exige estabelecer pontes que, na maioria das vezes, são ineficientes. Do mesmo modo que as aranhas, as nossas pipas digitais utilizam-se dos ventos que agitam a natureza digital. Entretanto, tais ventos são verdadeiros furacões que, invariavelmente, favorecerão o contato com outras entidades ali incluídas. As pipas digitais são em grande medida todos estes ativos que se nutrem dos dados da própria rede para descobrir modelos preditivos mais apurados e que precisam ser refinados o tempo todo. De certo modo, tudo o que acontece no mundo digital apela para nosso instrumental sensorial enquanto promete aumentar nossa cognição, fazendo remissão ao argumento do biólogo evolucionista Kevin Laland relativo às aranhas: suas teias são ajustadas pelo aparato sensório e são extensão de seus sistemas cognitivos.

As características observáveis sobre nós, e que constituem assim o nosso fenótipo, agora não são vislumbradas apenas pela proximidade física. Todos os dados que registramos (e também os dados que consumimos) constituem-se como características digitais observáveis que, por aproximação inferencial ao ponto de vista de Dawkins, corresponde ao nosso fenótipo estendido além dos objetos físicos que manipulamos, ou seja, objetos digitais. Somente ali, naquele espaço de entidades virtuais é que podemos observar as características que correspondem ao nosso fenótipo digital. Ao final, podemos afirmar que, neste mundo além do mundo natural, tudo o que é observado ou o que observamos só pode ser acessado através de uma estreita janela que se abre para o vislumbre de bilhões de teias tecidas com os fios pegajosos dos dados. É uma grande arquitetura repleta de andaimes temporários, de pipas que são lançadas ao vento, e de operários que recorrentemente a refinam por meio da intuição ou de instrumental analítico avançado para que as viscosidades sejam cada vez mais efetivas.

Toda esta dinâmica encontra sustentação naquilo que o ser humano mais demanda – a atenção. Nossa presa é a atenção dos outros e a nossa atenção é a presa deles. Quanto vale tudo isto? De quem é tudo isto? O valor é inestimável e a propriedade enfrenta discussão contínua. O fato é que cada um de nós, indiferente do valor de troca, quer, através deste ecossistema, alcançar a sensação de pertencimento ao mundo. Mas o mundo agora parece ser apenas uma ilha cercada de infinitas e intrincadas tramas: este enorme emaranhado onde as características digitais observáveis de cada um se apresentam como algo tão viscoso que tudo o que podemos fazer é seguir acreditando que nenhuma aranha vai nos devorar.

*Cassio Pantaleoni é presidente do SAS Brasil

Aviso: A opinião apresentada neste artigo é de responsabilidade de seu autor e não da ABES – Associação Brasileira das Empresas de Software

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