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*Por Marcelo Nery

Sou o coordenador de um Centro Colaborador da Organização Mundial de Saúde (OMS). Durante o período em que estou à frente deste centro, o principal foco tem sido a violência contra jovens, sem nunca deixar de lado a discussão sobre as principais violações de direitos individuais e os problemas sociais que enfrentamos no Brasil, considerando as distintas realidades regionais de norte a sul do país.

Nesse contexto, temas como negligência, autoridade parental, exploração, abuso sexual, violência doméstica e familiar, saúde mental, emergências humanitárias, direito urbano, preconceito, migração, língua materna, atividades criminosas, trabalho infantil e gênero, entre outros, têm sido abordados em nossos relatórios e atividades de disseminação e transferência de conhecimentos. Entre esses assuntos tão atuais e, ao mesmo tempo, tão persistentes, permita-me aqui destacar o último mencionado.

Esse interesse particular é justificado pela complexidade e pelas dificuldades inerentes à questão. Não me interprete mal, na OMS a violência de gênero é claramente reconhecida como uma prioridade social e de saúde pública. Entretanto, não podemos desconsiderar que à medida que essa questão se expande para incluir também a comunidade LGBTQIA+, tornam-se maiores as dificuldades de abordar a questão de forma pragmática. Então, devemos observar esse aspecto com maior consciência.

De fato, as agências da Nações Unidas, como a OMS, frequentemente solicitam que os países promulguem leis para proteger cidadãos LGBTQIA+, alertam que os prejulgamentos impedem que eles tenham acesso à saúde e emprego, divulgam relatórios, guias e recomendações para a proteção dos seus direitos e promovem campanhas globais pela igualdade LGBTQIA+. Isso ocorre com regularidade.

É notável como há 34 anos, em 17 de maio de 1990, na 43ª Assembleia Geral da OMS, a homossexualidade foi removida da lista de distúrbios mentais do Cadastro Internacional de Doenças (CID). Com essa decisão, o termo “homossexualismo” foi eliminado, pois o sufixo “-ismo” atribui um caráter depreciativo ao termo e sugere uma condição patológica. Na 11ª revisão do CID, realizada em junho de 2018, a OMS excluiu a transexualidade da classificação de doenças e transtornos mentais, representando um significativo avanço na compreensão e no respeito à diversidade. Ainda assim, a discriminação continua enraizada em vários aspectos da vida cotidiana.

Historicamente, as questões relacionadas à diversidade sexual e de gênero têm sido marginalizadas em muitas partes do mundo, o que pode resultar em uma falta de compreensão e reconhecimento da violência específica enfrentada por pessoas LGBTQIA+. Em diversas sociedades, as normas culturais e religiosas são citadas para justificar a resistência à implementação de políticas e programas destinados a proteger essas pessoas; consequentemente, em algumas jurisdições, as leis e políticas podem ser hostis ou inadequadas para estabelecer canais de denúncia e combater a violência de gênero que ocorrem habitualmente.

No Brasil há uma dualidade marcante: por um lado, abriga a maior Parada do Orgulho LGBTQIA+ do mundo, com milhões de participantes nas ruas de São Paulo, além de uma variedade de outras paradas ocorrendo em diferentes capitais e cidades do país. Por outro lado, apesar dos avanços na aceitação da diversidade sexual e de gênero, persiste uma significativa intolerância em relação aos indivíduos LGBTQIA+, o que se traduz em diversas formas de discriminação e violências.

Para uma abordagem mais humanizada, por mais contraditório que possa parecer em um primeiro momento, a tecnologia e a inovação tecnológica podem ser importantes promotores de empatia e respeito. Elas têm o poder de assumir um papel crucial na promoção de uma sociedade mais inclusiva e igualitária.

Atualmente, ao alcance de nossas mãos, há uma notável capacidade de transcender valores, costumes, crenças e atitudes, abrindo caminho para transformações significativas em relação à comunidade LGBTQIA+. No entanto, devemos reconhecer que as mudanças trazem tanto oportunidades quanto desafios.

Com relação às oportunidades, observamos que a comunicação online proporciona ao movimento LGBTQIA+ uma plataforma para aumentar a visibilidade e conscientização sobre questões relacionadas aos direitos sociais e à cidadania. Isso dá amplitude à voz daqueles que desejam compartilhar suas histórias e a maneira como percebem o mundo, educar sobre suas lutas e mobilizar apoiadores, independentemente da localização geográfica. Essa dinâmica cria comunidades de apoio e solidariedade, o que é especialmente significativo para aqueles que vivem em áreas onde o apoio local pode ser limitado.

Em uma zona cinza, entre vantagens e desvantagens, as tecnologias digitais podem, por exemplo, facilitar a mobilização e a organização de eventos, protestos e campanhas políticas relacionadas aos direitos LGBTQIA+, além de oferecer acesso a uma ampla gama de informações e recursos. No entanto, é necessário reconhecer que essas mesmas tecnologias podem agravar as disparidades existentes, deixando alguns grupos dentro da comunidade LGBTQIA+ ainda mais marginalizados e excluídos.

No que diz respeito aos desafios, não podemos subestimar a disseminação de desinformação e discurso de ódio online, que podem prejudicar os esforços do movimento LGBTQIA+ e minar a confiança na validade de suas causas. Também é vital reconhecer a desumanização, a relativização e a satirização online, estratégias que têm como objetivo desvalorizar, subordinar e normalizar a violência contra grupos minoritários.

Outro ponto relevante é que as tecnologias digitais, embora ofereçam oportunidades às manifestações, podem expor ativistas a riscos de segurança e violações de privacidade. Além disso, vale destacar que governos autoritários e grupos anti-LGBTQIA+ podem usar tecnologias para monitorar, perseguir e atacar acadêmicas, ativistas, candidatas, especialmente, e membros de movimentos sociais que defendem a diversidade sexual e de gênero. Logo, recomendo o conhecimento dos estudos desenvolvidos pelo InternetLab sobre violência política de gênero, violência online, conhecimento livre, desinformação generificada e afins.

Diante disso, precisamos examinar as inúmeras potencialidades e riscos do uso das novas tecnologias de informação para as ações políticas no Brasil, especialmente considerando o contexto do desenvolvimento das políticas públicas voltadas para grupos vulneráveis.

É crucial considerar o potencial aumento de eficiência ao integrar diversas perspectivas para enriquecer o desenvolvimento de produtos e serviços tecnológicos. Reconhecer como as perspectivas LGBTQIA+ no desenvolvimento e na aplicação da Tecnologia da Informação podem levar a avanços, ao introduzir novos paradigmas para a construção de ambientes digitais que promovam os direitos humanos, resultando em inovações tanto no ecossistema de startups quanto no setor GovTech.

Portanto, podemos concluir de que é essencial avaliar o impacto social e econômico de expandir a influência desses ambientes, estabelecendo ecologias informacionais complexas que capitalizem as capacidades das tecnologias existentes e os potenciais aperfeiçoamentos. A integração de pessoas LGBTQIA+ no âmbito da tecnologia abre caminho para o desenvolvimento de ecossistemas diversos e colaborativos, adaptados às necessidades das comunidades e grupos marginalizados que demandam nossa atenção e consideração.

*Marcelo Batista Nery é pesquisador no Think Tank da ABES e na Cátedra Oscar Sala do Instituto de Estudos Avançados da USP (IEA-USP), coordenador de Transferência de Tecnologia e Head do Centro Colaborador da OPAS/OMS (BRA-61) do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo.

Aviso: A opinião apresentada neste artigo é de responsabilidade de seu autor e não da ABES – Associação Brasileira das Empresas de Software

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