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*Por Anderson Röhe

Existem atualmente três correntes para um eventual desfecho da corrida global pela liderança das Inteligências Artificiais. A primeira acompanha a visão prospectiva de que a China em breve ultrapassará os Estados Unidos da América – EUA em algumas das suas aplicações, dado o potencial chinês para se tornar líder no setor. A segunda posiciona os EUA no mesmo lugar de supremacia em que está, pois questiona o quão próximo está essa liderança chinesa, uma vez que o país encontra resistências externas, assim como limitações internas e especificidades históricas que ainda o mantém atrás dos EUA. Já a terceira reconhece que a União Europeia – UE corre paralelamente, tentando recuperar o tempo perdido em extensos debates, embora seu pioneirismo tenha perdido a força de outrora e seja alvo de críticas de seus concorrentes. O objetivo, portanto, é aferir se China e UE têm condições efetivas para superar os EUA como superpotência em Inteligências Artificiais. E, secundariamente, apurar vantagens e desvantagens entre estes, tendo como metodologia a contraposição entre os três principais modelos em disputa. E o resultado esperado é a confirmação da hipótese de que a China é um competidor à altura capaz de, ao menos, (co)liderar essa competição.

EUA, China e União Europeia lideram a corrida regulatória das IAs

Os modelos regulatórios de EUA, China e União Europeia (UE) se apresentam hoje como as três principais propostas de governança das Inteligências Artificiais (IAs)[1]. Dentro dessa disputa, há uma clara liderança sino-estadunidense, fazendo com que a UE concorra por fora. Ocorre que até pouco tempo o cenário não era este, já que os EUA se importavam menos em matéria de regulação tecnológica. E foi a emergência chinesa que provavelmente despertou essa preocupação[2], pois diante de lacunas legislativas quem toma a dianteira na regulação costuma também a ditar o regramento do setor.

Logo, a atual pressa e urgência pela regulação tecnológica vêm não só da rápida popularização das IAs generativas[3], em razão de sua suposta ameaça existencial à democracia e à humanidade[4], mas também sobre o pânico moral instaurado pelo perigo de protagonismo das IAs pela China. Para muitos, uma ambição desmedida e tentada a qualquer custo[5], em virtude da meta chinesa de liderar a Inteligência Artificial já em 2030 (Made in China 2025)[6], superando assim o protagonismo isolado dos EUA.

De fato, a tese do protagonismo chinês não vem por acaso. Em Como a China se tornou uma superpotência em IA, André Gualtieri [1], eticista e advogado especializado em governança da IA, atribui essa reviravolta ao fato do “mindset da China ter se alterado completamente”, fazendo com que essa mudança ocorra em razão de uma série de fatores, tais como: políticas governamentais e reformas institucionais desde 1978 para apoiar uma cultura própria do empreendedorismo chinês; abertura ao comércio e ao investimento estrangeiro na década de 1970; seu ecossistema único de internet; políticas públicas voltadas para a IA; um modelo de economia digital que coleta dados em maior quantidade e mais qualidade do que no Ocidente.

Ainda é cedo, porém, afirmar que a China será alçada ao primeiro patamar da governança global graças à sua liderança em IAs, visto que há uma transição em curso. Isto é, de ascensão progressiva de uma potência emergente (China) suplantando outra que é ainda hegemônica (EUA). Processo lento e complexo, cujas camadas ou dimensões não são só tecnológicas, mas também econômica, mercadológica, concorrencial, cultural, cognitiva (domínio sobre a linguagem), e sobretudo (geo)política [2].

Gualtieri[3] também acredita que a disputa entre China e EUA vai além da questão das IAs, podendo ser vista em três versões: a) a China de fato tomará o lugar dos EUA como superpotência mundial. Primeiro por razões econômicas e, em seguida, pelo aumento do poder militar (hard power) e de maior influência global (soft power); b) o mundo fica(rá) dividido entre EUA e China como as maiores potências (nova Guerra Fria?); c) os EUA continuam como superpotência por força da inovação, tecnologia e tentativa e erro no campo empresarial.

Baseado em tais cenários, o escritor e cientista da computação Kai Fu-Lee[4] reforça que, apesar de haver outros modelos competitivos, como o do Reino Unido e Canadá, dentre as propostas de regulação destacam-se hoje apenas três frameworks (modelos) regulatórios das IAs. O que é evidenciado pelas mais recentes iniciativas no setor. Dentre estas: as europeias (Artificial Intelligence Act, Digital Services Act e Digital Markets Act); a estadunidense (Executive Order on Safe, Secure and Trustworthy Artificial Intelligence – EO) e as chinesas (Cyberspace Administration of China – CAC, the Internet Information Service Algorithmic Recommendation Management Provisions e The Shenzhen AI Regulation)[5] [6].

Por ora, o que se pode fazer a título de estudo ou pesquisa prospectiva, é trazer dados qualitativos e quantitativos que corroborem a tese de Kai Fu-Lee. Isto é, de que há mesmo uma concentração monopolística de mercado e poder das IAs por China e EUA. Como, por exemplo, o fato de que “sete super-plataformas sino-americanas detêm sozinhas dois terços do valor total do mercado digital no mundo”[1]. E que “essas potências lideram os avanços digitais, controlando sozinhas mais de 90% do valor de capitalização de mercado das 70 maiores empresas online do mundo”[2]. Argumento que é acompanhado pela futurista estadunidense Amy Webb [3], em seu livro The Big Nine: how the tech titans and their thinking machines could warp humanity, sendo que seis das big techs são dos EUA (Microsoft, IBM, Apple, Amazon, Google, e Facebook, atual Meta) e três são da China (Tencent, Baidu e Alibaba).

(Des)vantagens comparativas entre os modelos regulatórios em disputa

a) Modelo estadunidense:

É um modelo de governança descentralizada. Por enquanto não há uma Estratégia Nacional em Inteligência Artificial (o que se alinha à forma fragmentada de governo entre estados e agências federais), e sim uma ordem executiva[4]; embora a atual Administração Biden-Harris traga oito compromissos voluntários para as Big Techs[5] (logo, sem garantias de efetividade). Não se pensa bem em termos de política pública (porém de forma transversal, pois, em regra, a ênfase é a de que o Estado não seja forte). De cunho setorial[6], segundo cada aplicação que é dada às IAs (na área da saúde, da educação, do setor bancário, p. ex.). Criticado por ser excessivamente pró-mercado[7].

b) Modelo chinês:

A título de comparação, o benchmarking chinês (de governança centralizada) não deveria ser descartado, pois serve ao menos de contraponto ao dos EUA e da UE (no sentido de saber se há ou não garantia de efetividade). Visto que este tende a ser mais efetivo que os outros dois pela sua forma mais impositiva de governança (para outros, draconiana, opressora, autoritária). Pensa-se, então, em termos de política pública, e há como obrigar seu cumprimento (enforcement) pela mão forte do Estado.

c) Modelo europeu

O modelo regulatório europeu corre paralelamente, embora a União Europeia – UE tenha tomado a dianteira na proposta de regulação antes mesmo de China e EUA. As discussões começaram já em 2018 [1], todavia o pioneirismo europeu tem perdido a força de outrora e seja criticado por seus concorrentes; principalmente quanto ao rigor de uma pré-classificação do risco das IAs que supostamente engessaria o empreendedorismo, a livre iniciativa e a inovação[2].

Trata-se de um modelo de governança descentralizada. Não há uma Estratégia Nacional propriamente dita, por se tratar de um bloco econômico-político que apenas traz recomendações (diretivas) aos seus Estados-membros. Não havendo, portanto, garantia de efetividade e/ou de aplicabilidade na prática. Significa dizer que se pensa mais em termos de política pública (política externa como gênero de política pública) do que o modelo estadunidense, p. ex., contudo não tem o enforcement para obrigar os Estados Nacionais a internalizar o modelo proposto, e sim tentar negociar com eles.

O framework europeu seria, então, um meio termo entre os outros dois modelos, embora corra o risco de ser ofuscado pelo protagonismo sino-estadunidense. O receio europeu de ficar para trás reside, na verdade, no perigo de vir a ser um mero coadjuvante nesse embate, tornando-se vítima também do “colonialismo de dados” por China e EUA, a ponto de perder sua soberania digital[3]. O que justifica a sua iniciativa em ter começado os debates regulatórios acerca das IAs, a título mesmo de precaução.

Considerações finais

Ao final, percebe-se que a União Europeia, como via alternativa a China e EUA, hoje está tentando recuperar seu prestígio inicial[4]. Já quanto aos resultados esperados da pesquisa, refuta-se parcialmente a confirmação da hipótese de que a China já tenha hoje o potencial de liderar, ou ao menos coliderar a corrida regulatória junto aos EUA. Por fatores até mesmo extrínsecos às IAs. Portanto, não há a confirmação da tese de Kai Fu-Lee de que em breve a China ultrapassará os EUA na liderança global das IAs. Há mais um anseio pelo autor do que uma oportunidade de fato.

*Anderson Röhe é Pesquisador Fellowship do GT de Inteligência Artificial do Think Tank ABES.  As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, os posicionamentos da Associação

[1] SOARES, Matheus. China, EUA e União Europeia lideram a corrida regulatória. Disponível em: https://desinformante.com.br/corrida-regulatoria/.

[2] SOARES, Matheus. Op. Cit.

[3] JUNQUILLO, Tainá Aguiar. Um ‘sextou’ diferente e histórico para a regulação da inteligência artificial. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/um-sextou-diferente-e-historico-para-a-regulacao-da-inteligencia-artifi cial-11122023.

[4] REUTERS. Rápida proliferação de inteligência artificial é ameaça à democracia, dizem especialistas. Disponível em: https://noticias.r7.com/tecnologia-e-ciencia/rapida-proliferacao-de-ia-e-ameaca-a-democracia-dizem-especialistas-09112023.

[5] ZHANG, Angela Huyue. China’s Short-Sighted AI Regulation. Disponível em: https://www.project-syndicate.org/commentary/risks-of-beijing-internet-court-ruling-allowing-copyright-of-ai-generated-content-by-angela-huyue-zhang-2023-12?barrier=accesspaylog.

[6] CBS News. China announces goal of leadership in artificial intelligence by 2030. Disponível em: https://www.cbsnews.com/news/china-announces-goal-of-leadership-in-artificial-intelligence-by-2030/

[7] GUALTIERI, André. Como a China se tornou uma superpotência da IA: os fatores por trás da liderança chinesa em IA. Disponível em: https://andregualtieri.substack.com/p/como-a-china-se-tornou-uma-superpotencia?

[8] CORTIZ, Diogo. As pesquisas com inteligência artificial devem ser paralisadas temporariamente? NÃO. Disponível em:  https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2023/04/as-pesquisas-com-inteligencia-artificial-devem-ser-paralisadas-temporariamente-nao.shtml.

[9] GUALTIERI, André. A inteligência artificial é a continuação da política por outros meios: a disputa entre China e Estados Unidos. Disponível em: https://andregualtieri.substack.com/p/a-inteligencia-artificial-e-a-continuacao?

[10] LEE, Kai-Fu. Inteligência Artificial (Portuguese edition): como os robôs estão mudando o mundo, a forma como amamos, nos relacionamos, trabalhamos e vivemos. Ebook. Tradução Marcelo Barbão de AI Superpowers. 1ª ed. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2019.

[11] COMISSÃO EUROPEIA. Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho que Estabelece Regras Harmonizadas em Matéria de Inteligência Artificial (Regulamento Inteligência Artificial) e Altera Determinados Atos Legislativos da União. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/EN/TXT/?uri=celex%3A52021PC0206&print=true.

______. The Digital Services Act package. Shaping Europe’s digital future. Disponível em: https://digital-strategy.ec.europa.eu/en/policies/digital-services-act-package.

[12] LAWGORITHM. Fórum Brasileiro de IA Responsável. Disponível em: https://www.lawgorithm.org.br/forum-brasileiro-de-ia-responsavel.

[13] WENTZEL, Marina. Como a corrida mundial pelo processamento de dados pode ‘colonizar’ o Brasil e outros países? BBC News Brasil, 13 out. 2019. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-49981458.

[14] WENTZEL, Marina. Op. Cit.

[15] WEBB, Amy. The Big Nine: how the tech titans and their thinking machines could warp humanity. Public Affairs; first edition, 2019.

[16] THE WHITE HOUSE. Fact Sheet: President Biden Issues Executive Order on Safe, Secure, and Trustworthy Artificial Intelligence. Disponível em: https://www.whitehouse.gov/briefing-room/statements-releases/2023/10/30/fact-sheet-president-biden-issues-executive-order-on-safe-secure-and-trustworthy-artificial-intelligence/.

[17] THE WHITE HOUSE. Fact Sheet: Biden-⁠Harris Administration Secures Voluntary Commitments from Leading Artificial Intelligence Companies to Manage the Risks Posed by AI. Disponível em: https://www.whitehouse.gov/briefing-room/statements-releases/2023/07/21/fact-sheet-biden-harris-administration-secures-voluntary-commitments-from-leading-artificial-intelligence-companies-to-manage-the-risks-posed-by-ai/

[18] BUTCHER, Isabel. Op. Cit.

[19] KAUFMAN, Dora. As contribuições dos EUA na regulamentação da IA. Disponível em: https://epocanegocios.globo.com/colunas/iagora/coluna/2023/07/as-contribuicoes-dos-eua-na-regulamentacao-da-ia.ghtml.

[20] CORTIZ, Diogo. O que é o AI Act? Disponível em: https://www.linkedin.com/posts/diogocortiz_tecnologia-inovaaexaeto-inteligenciartificial-activity-7139316954720378880-jM-w/?

[21] THE WHITE HOUSE. Fact Sheet. Op. Cit.

[22] MELLO, Patrícia Campos. Sul Global precisa agir rápido para não perder a soberania sobre seus dados, diz enviado da ONU. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/tec/2023/11/sul-global-precisa-agir-rapido-para-nao-perder-a-soberania-sobre-seus-dados-diz-enviado-da-onu.shtml.

[23] BRADFORD, Anu. The Brussels Effect: how the European Union rules the world. Oxford: Oxford University Press, 2020.

Aviso: A opinião apresentada neste artigo é de responsabilidade de seu autor e não da ABES – Associação Brasileira das Empresas de Software

 

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