*Por Marcelo Batista Nery
Um estudante de graduação em Ciências Sociais como eu, que se formou em uma universidade que valoriza o ensino de obras e autores clássicos, certamente estudou O Suicídio de Émile Durkheim. Para Durkheim, o suicídio é um fenômeno paradoxal, e esse é o ponto de partida. Embora não siga aqui rigorosamente os pressupostos dele, adotar essa perspectiva pode ajudar a pensar sobre algo atual e importante.
Apesar do suicídio aparentar ser a mais pessoal das ações que um indivíduo pode realizar, há muito mais em jogo. À primeira vista, a ideia de que o suicídio é uma expressão de autonomia parece fazer sentido, pois envolve uma complexidade de fatores, incluindo conflitos internos profundos, sentimentos de isolamento e desconexão em relação aos outros. Além disso, o ato de tirar a própria vida é comumente feito em segredo, e sua execução costuma refletir uma condição particular na qual a pessoa sente que não há outra saída para o seu sofrimento.
No entanto, o suicídio é um fenômeno universal, ocorrendo ao longo da história humana e em todas as partes do mundo. Em algumas situações, são encontradas muitas similaridades, o que leva à conclusão de que existem fatores sociais que interferem de forma decisiva, direta e indiretamente, nesse ato. É assim um fenômeno complexo e multifacetado que pode ser mal compreendido em uma perspectiva restrita.
Portanto, o suicídio não é apenas uma tragédia no âmbito privado, mas também um sério problema de saúde pública, sendo umas das principais causas de morte no mundo. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), nos últimos 40 anos, a taxa de suicídio aumentou 60% em vários países, sendo atualmente a segunda principal causa de morte violenta entre jovens de 15 a 19 anos e a terceira principal causa de morte violenta entre pessoas de 15 a 29 anos. Ainda assim, em países como Japão, Coréia do Sul, Hungria e Suécia, as taxas de suicídio entre os idosos são mais elevadas em comparação com outros grupos etários. Também é importante considerar que gênero, etnia e estado civil são marcadores significativos para a compreensão desse fenômeno.
O ato suicida tem aumentado progressivamente nas últimas décadas, tornando-se um problema recorrente e, consequentemente, alvo de pesquisas nas mais variadas áreas. Nas pesquisas científicas, as Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) facilitam a coleta, o tratamento e o processamento de dados, agilizando a obtenção de conhecimentos estratégicos para as políticas públicas. O seu rápido avanço, que inclui Inteligência Artificial (IA), tem levado à sua aplicação em muitos setores, incluindo a saúde, serviço social, educação, direito, segurança pública etc. Essas tecnologias são capazes de analisar grandes volumes de dados, identificar padrões e orientar decisões complexas.
No plano das relações interpessoais, esses dados abrangem características como fácil acesso a substâncias psicoativas e/ou a um método para cometer suicídio (como armas de fogo), sobreposição de várias carências demográficas, ausência de vínculos com a sociedade ou grupos sociais (integração) e falta de apoio de instituições sociais,
culturais, legais e políticas (regulação social), situações que geralmente se agravam durante crises econômicas ou mudanças sociais abruptas. Além disso, publicações nas redes sociais também podem ser usadas como dados para identificar comportamentos de pessoas com tendências suicidas.
O crescente interesse científico levanta importantes questões legais e humanitárias, especialmente em áreas mais sensíveis. Existem muitas preocupações éticas e de segurança relacionadas às Iniciativas de prevenção do suicídio mediadas por tecnologia, que vão desde a falta de habilidade dos profissionais com novas ferramentas digitais até a baixa qualidade dos dados, o que compromete o uso seguro das TICs para identificar comportamentos autodestrutivos.
O uso de TICs na prevenção do suicídio levanta questões sobre privacidade, consentimento e o potencial para estigmatização. A coleta e o processamento de dados sensíveis, como aqueles obtidos de redes sociais, exigem um cuidado redobrado para garantir que a confidencialidade e os direitos dos indivíduos sejam respeitados. Ao mesmo tempo, a falta de padronização nos métodos e a dependência de algoritmos de IA podem perpetuar vieses existentes ou criar novos, resultando em diagnósticos incorretos e na falta de apoio e recursos para pessoas em risco.
A desistência da vida deve ser compreendida dentro do contexto histórico de cada sociedade. É indispensável levar em consideração os aspectos locais e geracionais. Hoje, é essencial analisar como as tecnologias estão moldando as condições sociais presentes e, consequentemente, afetando as taxas de suicídio futuras. Para países menos desenvolvidos, como o Brasil, é básico que o desenvolvimento e a aplicação dessas tecnologias sejam acompanhados por debates éticos e por regulamentações que abordem a trajetória do Estado, os tempos atuais e as circunstâncias que se avizinham.
Nesse contexto, as IAs não são apenas ferramentas. Elas também atuam como agentes de mudança social, influenciando como lidamos com questões de saúde mental e o bem-estar da sociedade como um todo. Elas têm o potencial de alterar drasticamente as formas de comunicação, trabalho e interação, podendo criar ambientes onde as pessoas se sintam desconectadas ou vivenciem a perda de experiências significativas. Esse impacto pode atingir grandes proporções e representar uma ameaça à coesão social. No entanto, novamente, há muito mais em jogo.
As IAs têm desempenhado um papel cada vez mais relevante no cotidiano, com o potencial de transformar a forma como aprendemos, possibilitar decisões mais informadas e melhorar a vida das pessoas. Contudo, é importante reconhecer que, desde sua concepção, essas tecnologias devem ser vistas como um avanço (não necessariamente progresso) que requer a mais ampla atenção e consideração.
Temos uma responsabilidade coletiva na prevenção do suicídio, o que implica na criação e na estruturação de condições sociais saudáveis. Com a imprescindível introdução das tecnologias de IA, é crucial que a sociedade assegure que essas condições estejam alinhadas com os direitos e deveres das gerações atuais e vindouras, promovendo equidade e interseccionalidade, e evitando o agravamento de problemas sociais já existentes.
*Marcelo Batista Nery é pesquisador no Think Tank da ABES e na Cátedra Oscar Sala do Instituto de Estudos Avançados da USP (IEA-USP), coordenador de Transferência de Tecnologia e Head do Centro Colaborador da OPAS/OMS (BRA-61) do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo. As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, os posicionamentos da Associação.
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