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*Por Marcelo Nery

Podemos ser surpreendidos a qualquer momento. No entanto, quando nos encontramos surpresos por eventos que se repetem, tal reação pode indicar uma falta de conhecimento ou uma escolha consciente de negligência. A premissa que desejo destacar é que, embora as respostas a um problema previamente identificado possam ser objetivas, no contexto brasileiro, a transição do aprendizado do passado para a implementação de ações concretas é tudo menos simples. Para ilustrar esse ponto, e garantir que ignorância não seja uma desculpa, vamos considerar um exemplo peculiar, sem perder de vista a cronologia dos fatos. 

Em um certo momento, uma série de mobilizações ocorre simultaneamente em dezenas de cidades. Essas mobilizações podem ser consideradas a primeira insurreição ou levante popular de proporções realmente nacionais em décadas. Tudo parece ter começado por motivos que muitos consideram banais: um aumento de tarifa aqui, um ato de violência policial ali e uma falta de investimentos em serviços públicos acolá. Nada fora do normal. Reivindicações trabalhistas e classistas chamam a atenção, pois há algum tempo categorias em greve ou mobilizadas reivindicavam suas próprias pautas. Também nada fora do comum. 

Até que uma série de insatisfações e movimentos de reivindicações, que vinham fermentando nos anos anteriores, eclodem e ganham destaque. Parte da imprensa é criticada pela falta de cobertura dos protestos. Alguns meios de comunicação são acusados de ignorar a importância da contestação social. Como as convocações são feitas pela Internet, muitas vezes há mais confiança nas informações online do que nas veiculadas pela televisão ou jornais. 

A opinião predominante é que as mídias tradicionais ampliam tardiamente a cobertura das reivindicações. Profissionais de imprensa sofrem intimidações provenientes tanto de manifestantes quanto de policiais. Os maiores veículos de comunicação e seus jornalistas são rechaçados nas manifestações. Esses veículos e os representantes dos poderes públicos, ao menos de antemão, descrevem os protestos como atos de vandalismo, decorrentes de ignorância política e ideológica. 

Em resposta à essa descrição, que frequentemente estava vinculada declaração da falta de exigências claras durante as reivindicações, um coletivo online lança um vídeo intitulado “As 5 Causas!”, sugerindo os motivos consensuais pelos quais as pessoas estariam se manifestando e pedindo a colaboração e adesão a essas causas. Os protestos recebem destaque nas principais agências de comunicação internacionais, que ressaltam a “truculência” da polícia e o “clima de insegurança”. 

Integrantes do governo fazem declarações sobre os atos públicos. Alguns afirmam que aquelas manifestações são legítimas e próprias da democracia, enquanto outros dizem que aquele vandalismo não deve ser tolerado. No mesmo momento em que observamos o aumento das ações estatais violentas contra os ativistas, assistimos a pronunciamentos dos poderes públicos que procuram tranquilizar a população. Evidencia-se uma disputa interna pelo protagonismo da mobilização entre movimentos sociais, grupos anarquistas, sindicatos e correntes partidárias. Finalmente, ocorre um encontro entre representantes dos poderes públicos e dos manifestantes. 

Como resultado, algumas demandas são atendidas, um pacto de melhoria dos serviços públicos é prometido, um plebiscito é proposto, medidas prioritárias são definidas, leis são aprovadas e as mobilizações coletivas abrandam. Mas, não podemos esquecer que o saldo também conta com a emergência de um ambiente propício para ideias extremistas desenvolverem mitos e provocar desinformação, menos confiança nas instituições públicas e nas mídias tradicionais, depredações, centenas de prisões e pessoas feridas. 

Há onze anos, neste mesmo mês, milhares de brasileiros entoavam palavras de ordem nas principais capitais do país pedindo mudanças na política e nos serviços públicos. Os métodos utilizados incluíam protestos de massa, assembleias populares, interface entre ciberativismo e mídia alternativa, táticas Black Bloc, ocupações, barricadas, pichações, cartazes e faixas. Houve ainda ataques a símbolos do capitalismo, como agências bancárias e estabelecimentos de grandes franquias internacionais, e do poder público, como viaturas policiais e edificações de assembleias legislativas. 

De fato, junho de 2013 não teria ocorrido daquela forma se o cenário de insatisfação não tivesse sido minimizado até se transformar em indignação coletiva. Não teria acontecido sem o rápido acesso da população aos meios de comunicação online, especialmente às redes sociais. E não teria transcorrido daquele jeito sem a violenta repressão policial. 

Como podemos prevenir a recorrência de um incidente semelhante? Quais lições tiramos dessa experiência? 

Para responder a essas perguntas precisamos entender três pontos fundamentais. Primeiro: As recentes transformações na sociedade brasileira devem ser analisadas no contexto das mudanças mundiais. Porém, é essencial destacar que a insatisfação social não é genérica, mas sim um conjunto de tendências em diferentes sociedades e períodos. No Brasil, o brasileiro tende a agir conforme a emoção, e não a razão (como advertia Sérgio Buarque de Holanda), as manifestações costumam ser rápidas e intensas. Portanto, as insatisfações que geraram os protestos nas metrópoles brasileiras apresentam semelhanças globais, mas as singularidades locais são elementos presentes em diversas nuances das mobilizações populares. 

Segundo: O poder de mobilização das plataformas de mensagens instantâneas e das redes sociais é hoje amplamente reconhecido, pois elas sensibilizam os usuários de forma que estes compartilham conteúdos questionáveis (pela veracidade ou exatidão das afirmações, por exemplo) e até participam sentenciosamente de causas reivindicatórias. Essas causas, embora coletivas, são frequentemente interpretadas de forma personalística, reduzindo o político ao pessoal. Isso resulta em bolhas de opinião e na privatização da política, inserindo-a em algo como uma “gramática moral”, ou seja, uma pressuposta estrutura inata e universal da moralidade humana. Tal privatização gera ações coletivas frequentemente anti-institucionais, com potencial para inclusive desestabilizar contextos democráticos. 

Terceiro: As atuações violentas dos agentes do Estado nas manifestações não são apenas reações a algum comportamento prévio ou esperado. O Estado, cujo uso da força é legítimo para a manutenção da paz e da ordem nas sociedades, influenciado pelo querer coletivo dos grupos sociais, opera de acordo com interesses e valores em disputa, priorizando os grupos conforme sua importância em termos de poder e hierarquias sociais. Essa priorização afeta a estrutura e as funções do Estado, com certos custos para a sociedade civil. A título de exemplo, a violência policial, que geralmente atinge mais grupos sociais distintos em circunstâncias específicas, está relacionada à percepção desses grupos e aos mecanismos de controle social assim como às inquietações políticas e econômicas dominantes. 

Em síntese, as proposições básicas são: as insatisfações não podem ser circunscritas aos processos globais; o político não pode ser reduzido ao pessoal; e a ação do Estado não pode ser limitada à coerção de grupos típicos e tipificados. 

Parece claro que chegamos a um momento raro no qual a resposta inicial pode ser objetiva. Antes de futuras jornadas é decisivo: implementar medidas de prevenção de conflitos baseadas na compreensão das causas locais das insatisfações, aumentando a confiança nas instituições democráticas (públicas, sociais, políticas, legais etc.); adotar tecnologias de comunicação para monitorar e responder de forma eficaz às demandas e às crises sociais, promovendo o diálogo e a participação cidadã; e fortalecer mecanismos de accountability para garantir a responsabilização dos agentes envolvidos, tanto dos manifestantes quanto do Estado, priorizando a segurança do patrimônio e, sobretudo, das pessoas sem empregar a força excessiva, que somente como último recurso deve-se recorrer. Por certo, respostas objetivas. No entanto… 

*Marcelo Batista Nery é pesquisador no Think Tank da ABES e na Cátedra Oscar Sala do Instituto de Estudos Avançados da USP (IEA-USP), coordenador de Transferência de Tecnologia e Head do Centro Colaborador da OPAS/OMS (BRA-61) do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo.

Aviso: A opinião apresentada neste artigo é de responsabilidade de seu autor e não da ABES – Associação Brasileira das Empresas de Software

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